A ILHA EM QUE TUDO ERA ETERNO
A obra-prima de Adolfo Bioy
Célebre escritor argentino e um dos
maiores nomes da literatura fantástica latino-americana, Adolfo Bioy Casares
consolidou seu reconhecimento nas letras ao publicar, em 1940, A Invenção de Morel. Ao receber, anos
mais tarde, um dos maiores prêmios da língua espanhola, o Miguel de Cervantes,
dentre muitas outras láureas ao longo de sua trajetória, Bioy projetou-se,
definitivamente, como um dos grandes prosadores da literatura argentina no
cenário internacional.
O prólogo do livro pertence ao
escritor, crítico e amigo de Bioy, Jorge Luís Borges. O poeta argentino
principia o texto com a comum ideia à sociedade de que a originalidade e
relevância das obras literárias estão se extinguindo, visto que as novelas “sem argumento ou com argumento
infinitesimal atrofiado”¹ tornam-se cada vez mais apreciadas pelos
leitores de diversos países. Poucos são os autores que renovam conceitos e
propõem ideias novas. Bioy é um deles. Borges não hesita em classificar a trama
de Casares como “perfeita”.
Escrito em forma de diário, A Invenção de Morel inicia-se com a
descrição de uma ilha quente, repleta de mosquitos, dotada de plantas,
capinzais, pântanos e córregos sujos, com fortes marés irregulares. O lugar
conta ainda com edificações concluídas e abandonadas: um museu, uma igreja e
uma piscina. Trata-se da perspectiva de um foragido da polícia, perseguido
injustamente por motivos não citados, sobre o esconderijo encontrado para sua
fuga. Ao saber da ilha através de um mercador italiano, o personagem ignora a
fama do local – conhecido como foco de uma enfermidade que “mata de fora pra dentro” ² –, tamanha é a sua sede por liberdade.
Após 100 dias na ilhota,
aparentemente deserta, o fugitivo nota a repentina presença de um grupo de
pessoas que comportavam-se como veranistas instalados. Dentre os novos
habitantes, estava Faustine, por quem o solitário desertor apaixona-se
perdidamente. A bela mulher de pele dourada e cabelos pretos, que contempla o
pôr do sol todas as tardes no alto de uma colina, desperta reflexões e atitudes
antes impensáveis pelo personagem: além de dedicar um jardim à misteriosa
espanhola, ele tenta, por vezes, estabelecer diálogos com ela. Em vão.
“Não foi como se não
tivesse me ouvido, como se não tivesse me visto; foi como se seus ouvidos não
servissem para ouvir, como se seus olhos não servissem para ver.”³
Entre narrações sobre a dificuldade
em dormir nos baixios alagados pelas marés violentas e alimentar-se de estirpes
desconhecidas, o homem elabora as mais diversas hipóteses sobre o porquê de
Faustine e todos os outros “novos moradores” da ilha ignorarem-no, “como se eu fosse invisível” 4.
Estaria ele tendo desatinos devido àquela peste da qual falara o comerciante
italiano? Seriam as novas raízes que ele experimentara, alucinógenas? Sua
alimentação deficiente teria lhe tornado mesmo invisível? Ou os intrusos
poderiam ser alienígenas? A ilha seria um grande manicômio? E, ainda: aquelas
pessoas estariam mortas? Ou ele é que já não tinha mais vida? O fato é que as
conversas daqueles indivíduos se repetiam, as cenas eram as mesmas de alguns
dias atrás e até mesmo as palavras e movimentos reprisavam-se.
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Louise Brooks, estrela do cinema mudo da
década de 20, foi a principal inspiração de
Bioy na composição de Faustine |
Entre os outros membros do grupo,
destacava-se um “horroroso tenista
barbudo”, alto, de “dentes
abomináveis” 5, cujo nome era Morel. A explicação para todos os
mistérios da ilha e a grande perspicácia da obra surge através da descoberta da
invenção de Morel: o que acontecia no lugar era, na verdade, um grande
experimento científico. Morel arquitetou uma espécie de máquina que capturava
imagens, sons, tato, sabor, cheiro e temperatura de cenas protagonizadas pela
turma de amigos e registradas pelo aparelho. O jogo de receptores possibilitava
a projeção de animais, plantas, pessoas e ambientes como se aquilo, de fato, se
materializasse instantânea e infinitamente. Era a eternização da vida.
Após descobrir através de uma dessas
projeções gravadas por Morel – na qual o próprio cientista-tenista reunia as
pessoas e informava sobre sua invenção – que todas aquelas cenas eram
repetições das ações dos turistas (gravadas em uma época incerta), que a ilha
era habitada por fantasmas artificiais e que, ainda, ele estava apaixonado por uma
imagem, o solitário fugitivo passa a refletir e arquitetar a sua morte. Após
estudar todas as cenas projetadas pela “máquina da eternidade” e praticar
repetidos ensaios durante quinze dias, ele encontra um meio de inserir-se nas
imagens já gravadas, penetrando no mundo de aparências projetado, estabelecendo
diálogos naturais e movimentos harmônicos aos que a imagem de Faustine fazia.
Como todos que foram expostos à ação
daqueles aparelhos projetores, o desertor vai, aos poucos, deixando este mundo:
perde os cabelos, a pele, as unhas, a visão, o tato e todos os sentidos que
foram incorporados pela máquina (era a “doença
que matava de fora para dentro”). O diário, em que narrara e descrevera suas
experiências desde que chegara à ilha, transforma-se em uma espécie de registro
de delírios e alucinações do fugitivo. Mas ele manteve a consciência íntegra
até a última linha do manuscrito, quando pede aos possíveis futuros leitores o
seguinte:
“À pessoa que, baseada nessas
informações, inventar uma máquina capaz de reunir as presenças desagregadas,
farei uma súplica: procure-nos, a Faustine e a mim, faça-me penetrar no céu da
consciência de Faustine. Será um ato piedoso.” 6
E, assim, morre. Sua alma passa à sua imagem
projetada para estar com Faustine em uma visão que nunca ninguém recolherá.
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| Criação de nova capa e diagramação do livro por alunos do SENAC de São Paulo |
Fantasmagórica, fascinante, opressiva
e genial, a ficção científica de Bioy dialoga diretamente com o texto O Mundo das Imagens (Sobre Fotografia, 1973),
de Susan Sontag. Nele, a escritora americana discute o papel que as imagens
ocupam na sociedade e a realidade como um conjunto de aparências:
“No mundo real, algo está acontecendo e ninguém sabe o que vai acontecer. No mundo-imagem, aquilo aconteceu e sempre acontecerá daquela maneira. (...) O que na realidade está separado, as imagens
unem.” 7
Sontag comenta que o
pânico que algumas tribos primitivas têm das câmeras decorre do pavor de pensar
a foto como uma parte material delas mesmas, assim como em A Invenção de Morel, uma passagem explicita este referido exemplo:
“Por acaso, recordei que o fundamento do
horror, que alguns povos sentem, de se verem representados em imagens, é a
crença de que, ao se formar a imagem de uma pessoa, a alma passa para a imagem
e a pessoa morre.” 8
Susan lembra ainda, que
algum vestígio dessa magia perdura na sociedade atual: a relutância em rasgar
ou jogar fora a foto de uma pessoa amada, sobretudo quando morta ou distante
faz parecer que ela está ali, materializada na imagem. Assim como a obra de
Bioy, em Sobre Fotografia Susan
discute através de outra linguagem e sob diferente contexto, o fascínio
exercido pelas imagens na população – o que demonstra a sagacidade de Adolfo
Casares (que falou sobre essas técnicas revolucionárias nos anos 40, quando
ainda não se falava tanto sobre o assunto).
A obra-prima do argentino atenta também
para a questão imagética e quase platônica que circunda as relações amorosas
durante a História: em grande parte das vezes, idealiza-se a pessoa amada,
concedendo a ela uma espécie de aura perfeita. Poucos têm em mente, porém, que
a imagem projetada não diz respeito às características autênticas do outro, mas
sim aos desejos e expectativas de quem arquiteta essa ilusão. Outras
tradicionais histórias românticas estimulam o raciocínio de “quanto mais obstáculos
existirem ao amor, mais intenso ele será”. Exemplos como as narrativas de Romeu
e Julieta, Tristão e Isolda e as incontáveis novelas passadas na televisão
reforçam essa ideia. Afinal, se Faustine não fosse uma imagem, o fugitivo teria
se apaixonado por ela? Ele gostaria da personalidade, atitudes, pensamentos e
até mesmo da voz da bela mulher se a tivesse conhecido pessoalmente? Nunca se saberá.
Ao
final da história, todas as soluções para os mistérios são inacreditavelmente
apresentadas, fazendo com que o leitor retorne diversas vezes às primeiras
páginas do livro, a fim de encontrar alguma falha ou lacuna nas explicações
expostas. Em vão. Tudo é rigorosa e atentamente observado pelo autor, que não
deixa passar à vista qualquer fato que possa levantar dúvidas. Com grande
riqueza de detalhes e descrições, A
Invenção de Morel possibilita até ao leitor mais distraído a elaboração de
sua própria “ilha”: quente, úmida, mística e fantástica. A obra depreende esforço,
atenção e energia intelectual de quem a lê, é verdade. Mas é indicada para todo
e qualquer amante da boa literatura – seja ela aventura, romance, ficção,
psicologia ou suspense. Afinal, não foi à toa que Luis Borges, um dos maiores
escritores argentinos de todos os tempos qualificou-a como “perfeita”. A Invenção de Morel é um exemplo de imaginação sem limites, perigo
da tecnologia, mistério (e até mesmo amor, como no caso do fugitivo) em torno
de referências e, é claro, um convite à uma ilha secreta onde fantasia e
realidade se sobrepõem.
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Curiosidade: em 15 de setembro de 2012, Adolfo Bioy teve a sua data de nascimento lembrada pelo Google, que elaborou um doodle inspirado no livro do escritor argentino, A Invenção de Morel
Notas:
¹ Adolfo Bioy CASARES, A Invenção de Morel, citada, p. 7
² Adolfo Bioy CASARES, A Invenção de Morel, citada, p. 14
³ Adolfo Bioy CASARES, A Invenção de Morel, citada, p. 35
4 Adolfo Bioy CASARES, A Invenção de Morel, citada, p. 34
5 Adolfo Bioy CASARES, A Invenção de Morel, citada, p. 43
6 Adolfo Bioy CASARES, A Invenção de Morel, citada, p. 124
7 Susan SONTAG, Sobre
Fotografia, citada, p. 184
8 Adolfo Bioy Casares, A
Invenção de Morel, citada, ps. 112 e 114
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